Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, no ano passado, e a demanda europeia por gás natural foi às alturas, o Egito percebeu uma oportunidade. Empolgado com a descoberta de um campo massivo em suas águas territoriais, em 2015, e desesperado por divisas estrangeiras, o governo egípcio aumentou as exportações pelo Mediterrâneo.
Um ano depois, durante o verão (Hemisfério Norte) escaldante deste ano, uma escassez de gás tem deixado o Egito em dificuldades para conseguir manter as luzes acesas. As exportações foram suspensas. Pela primeira vez em quase uma década, a cidade do Cairo experimenta apagões consecutivos, alimentando o descontentamento público ao mesmo tempo em que o presidente Abdel Fatah El-Sisi prepara-se para concorrer a um terceiro mandato.
Por uma hora diariamente, os ares-condicionados e ventiladores param de funcionar. Os elevadores também param. A internet cai. Bairros sem eletricidade são iluminados à noite apenas pelos faróis dos carros que trafegam pelas ruas.
Em regiões rurais fora da capital, os blecautes são mais frequentes e duram mais. A população em crescimento e verões mais quentes aumentaram a demanda doméstica por eletricidade no país árabe mais populoso do planeta, pressionando uma rede altamente dependente do gás natural.
O Egito entusiasmou-se demais em seu impulso de produzir e exportar gás natural, afirmam analistas, sem se preocupar com o declínio do rendimento dos campos ou em diversificar as fontes que alimentam o país de eletricidade. No início do verão, começou a faltar energia, ao que pareceu, aleatoriamente, relataram egípcios — em certas ocasiões várias vezes ao dia e por horas a fio.
Hussein Anwar, de 22 anos, trabalha em uma farmácia de Gizé, a oeste do Cairo. Quando começou a faltar energia por períodos de três a quatro horas, em julho, Anwar teve de pegar todos os medicamentos que requerem refrigeração — hormônios, insulina, vacinas — e correr pelo bairro até um prédio com eletricidade.
Em Mahalla, uma cidade mediana no Delta do Nilo, os cortes de energia continuam “muito aleatórios”, durando de 5 minutos a 3 horas por dia, segundo Khaled, diretor-executivo de uma empresa de porte médio na localidade.
A empresa, que processa transações internacionais regularmente, teve de comprar um novo gerador recentemente que custou mais de 100 mil libras egípcias (cerca de US$ 3,2 mil). A legislação do Egito proíbe o transporte de combustível em galões, então, “a cada dois dias, eu tenho que alugar um caminhão para levar o gerador até o posto para reabastecê-lo”, afirmou Khaled.
Como outras fontes ouvidas para a elaboração desta reportagem, Khaled contou sua história ao Washington Post sob a condição de ser identificado apenas pelo primeiro nome para poder conversar abertamente a respeito de um tema sensível.
O governo “está fracassando dramaticamente”, afirmou Khaled. “Nós vivemos uma catástrofe, e a catástrofe não é distribuída igualitariamente.”
Demanda nas alturas
Em junho, reconhecendo que a rede de fornecimento de eletricidade estava sob pressão, o governo cessou as exportações de gás. Mas uma onda de calor brutal se abateu em julho.
O governo anunciou medidas para poupar energia naquele mês — incluindo um cronograma de cortes diários no fornecimento em todo o país. O primeiro-ministro Mostafa Madbouly anunciou que o Egito importaria mais diesel para alimentar suas usinas de eletricidade.
As regiões costeiras do Egito, que atraem turistas estrangeiros e a elite do Cairo nos meses de verão, não foram incluídas nos apagões planejados.
“Turistas estrangeiros chegam e pagam tudo em moeda forte, o que constitui uma grande fonte de renda para o governo egípcio”, afirmou Madbouly na ocasião. “Se nós cortarmos a eletricidade em áreas costeiras, os turistas desaparecerão.”
Alguns subúrbios ricos construídos recentemente na região da capital também foram poupados. Mas os apagões deste ano se notabilizaram por atingir alguns dos bairros mais exclusivos do Cairo. Em Zamalek, um verdejante refúgio numa ilha do Nilo, um wine bar servia clientes suados em meio à escuridão absoluta numa noite recente.
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Em uma loja de especiarias no bairro de classe média Al Haram, próximo às Pirâmides de Gizé, versos do Corão emanavam de uma TV cuja tela parou de funcionar ao ser danificada por um corte de eletricidade, de acordo com Mahmoud, que trabalha com seu tio.
A dupla depende de balanças digitais para pesar porções de cominho, açafrão e grãos secos. “Estamos com dificuldades”, afirmou Mahmoud. “Se falta luz, nós não conseguimos pesar nada.”
Para o governo, a crise energética “não poderia ter vindo em um momento pior”, afirmou Timothy Kaldas, vice-diretor do Instituto Tahrir para Políticas do Oriente Médio.
“O país sofre uma falta massiva de moeda forte, tem enormes problemas de incumprimento de serviços de dívidas no exterior e acesso muito limitado a ajuda externa”, afirmou ele. “Portanto, comprar energia, além de pagar os preços em alta dos alimentos e tudo o mais, impinge fardos adicionais ao Estado.”
Apostando no gás natural
A última vez que os cairotas tinham experimentado cortes de energia disseminados durante meses havia sido entre 2012 e 2014, após a revolução de 2011 que depôs o autocrata Hosni Mubarak, aferrado havia muito ao poder.
A dilapidada estrutura energética da era Mubarak e a agitação política e financeira contribuíram para frequentes apagões, de horas, em todo o país, afirmaram analistas.
Ao chegar à presidência, em 2014, Sisi investiu pesadamente no aumento da capacidade de produção de eletricidade, concedendo à gigante alemã Siemens seu maior contrato em todos os tempos para construir novas usinas de energia a gás no Egito.
O gás natural foi descoberto no Egito pela primeira vez nos anos 60. Mas a indústria decolou na década passada, após a descoberta, em 2015, do campo de Zohr — o maior depósito de gás já encontrado no Mediterrâneo.
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022, e os países europeus dependentes de gás tiveram de apelar para outras fontes, o Egito se apresentou. No fim de abril daquele ano, o Egito tinha ganhado mais com as exportações do que sua receita total em 2021 — US$ 3,9 bilhões, noticiou o site jornalístico Quartz.
Sob um acordo assinado em junho de 2022 com Israel e União Europeia, gás israelense também foi fornecido a usinas egípcias para ser convertido em líquido e exportado à Europa.
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O Egito exportou 8,5 milhões de toneladas de GNL em 2022, o que fez do país o 12.º maior exportador do mundo, de acordo com a consultoria Rystad Energy. Pela primeira vez, 60% da produção egípcia de gás destinou-se à Europa, anunciaram as autoridades.
Analistas de mercado começaram a soar alarmes a respeito do declínio na produção na primavera deste ano, em meio a relatos de problemas de infiltração de água no campo de Zohr. Mas o Egito continuou a exportar GNL no mesmo ritmo.
Autoridades egípcias reconheceram que a escassez de gás ocasionou os cortes de eletricidade deste verão, mas minimizaram os problemas no campo de Zohr.
Sisi culpou as altas temperaturas e afirmou que a falta de eletricidade seria pior se o setor do gás natural não tivesse crescido no Egito. “Quando há um problema, nós temos de ajudar um ao outro”, afirmou ele em agosto. Alguns analistas dizem que o Egito teve sede demais.
“Mesmo se você tem um campo enorme, se decidir produzir uma quantidade muito substancial de gás em um curto período de tempo você enfrenta algumas dificuldades”, afirmou Siamak Adibi, da consultoria global em energia FGE.
O governo deveria ter levado em consideração o declínio do campo de gás e as necessidades de uma população crescente, afirmou Kaldas.
“Era evidente que o Egito seria um exportador de gás temporário a não ser que houvesse alguma outra descoberta massiva”, disse ele. “Por que o Estado não previu essa situação?”
Os cortes de energia são particularmente embaraçosos para Sisi porque ele atrelou seu legado à melhoria da infraestrutura egípcia, afirmou a cientista política Bessma Momani, da Universidade de Waterloo, no Canadá. “Eu comparo a crise elétrica a um tapa na cara das pessoas, porque ocorre em contraste diametral ao que Sisi tem prometido”, disse ela.
O governo egípcio anunciou na terça-feira planos para perfurar 35 poços exploratórios para expandir a capacidade do campo de Zohr. A decisão de Israel de expandir as exportações de gás natural ao Egito também podem ajudar.
Por agora, o Egito conta com as temperaturas mais baixas do outono. Meios de imprensa locais noticiaram esta semana que os apagões deverão acabar em setembro.
Mahmoud e seu tio na loja de especiarias, em Al Haram, não veem a hora desse dia chegar. “Nós esperamos e rezamos a Deus para que as coisas possam mudar para melhor”, disse o tio. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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